ELISA LARKIN FALA DE ABDIAS

Olhar forte cheio de ternura

 

 

Para refletir sobre Abdias, peço licença para usar como título e ponto de partida uma frase emprestada de Iara Rosa. Poetisa, escritora e artista plástica, Iara participou do projeto Museu de Arte Negra (MAN), fruto de resolução do I Congresso do Negro Brasileiro, realizado em 1950 pelo Teatro Experimental do Negro (TEN). Com curadoria de Abdias, o projeto MAN deixou um acervo de mais de 500 obras, hoje sob a guarda do Ipeafro.

Fazia tempo que não víamos a amiga Iara. Poucos dias após o falecimento de Abdias, chegou-me a bela memória tecida por ela em palavras, tão colorida e bem desenhada quanto o casaco de tapeçaria que criara para ele se aquecer em Nova York quando para lá partiu em 1968.

 

Iara recorda em Abdias o “olhar forte cheio de ternura”. Mais que o seu semblante, a frase resume a qualidade essencial da personalidade e da atuação artística e política de Abdias.

O combate ao racismo era o eixo central de sua vida e ação. O olhar forte traduzia sua firmeza e determinação nas posições que defendia, seu discurso inflamado de convicção e indignação perante a injustiça, sua irredutível coerência diante das propostas teóricas e práticas ludibriantes que constantemente lhe eram oferecidas. Por tudo isso, ele ganhou a reputação de ativista radical e intransigente. Incontáveis vezes tal reputação se expressou nos epítetos “racista” ou “criador de caso”, que lhe eram aplicados por pessoas insensíveis à injustiça racial ou que pensavam deter o monopólio da análise e do discurso corretos sobre ela.

 

Mas a veemência de Abdias no discurso e na atuação política era movida pela ternura, por sua profunda sensibilidade à condição humana e ao sofrimento alheio. Seu foco era o povo negro, porque ele testemunhou, desde criança, a discriminação impactando sua própria família. A injustiça racial era para ele – e é na sua essência – uma injustiça contra o ser humano. E o combate ao racismo, uma luta solidária por direitos humanos.

O Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado em 1944, foi fruto maduro dessa sensibilidade solidária. Aos 30 anos, Abdias já havia sido duas vezes preso político; viajado a América do Sul, a partir do Amazonas, com os poetas da Santa Hermandad Orquídea; passado um ano no Teatro del Pueblo de Buenos Aires; e criado dentro do Carandiru o Teatro do Sentenciado. Na prisão, ele escreveu o romance Zé Capetinha e o livro Submundo, este baseado em entrevistas de condenados, como Gino Meneghetti e o “Homem da Mala”, entre outros colegas presos. Ambos os textos testemunham a aguda sensibilidade humana de Abdias expressa na ternura de seu olhar.

 

Uma temporada anterior no Rio de Janeiro lhe trouxera a convivência com o samba, o choro e o culto aos orixás. Dessa confluência resultou a primeira iniciativa de resistência à discriminação racial a adotar como pauta a defesa e valorização da cultura de origem africana – o TEN. Artista por natureza, Abdias abriu a sua frente de luta na seara da cultura, que para ele não se separava do mundo da política. Além de uma extensa atuação artística, o TEN organizou convenções e congressos para combater o racismo na academia e na política. Publicou o jornal Quilombo, que aprofundava o debate e a reflexão sobre arte negra, negritude e a questão racial, abrindo suas páginas a candidatos negros de todos os partidos.

 

O projeto Museu de Arte Negra (MAN) buscava a inclusão e valorização de artistas negros e do legado africano; sua marca era a convivência. Colaboraram nos cenários das peças do TEN artistas como Tomás Santa Rosa e Enrico Bianco. Com eles e outros artistas, Abdias discutia a arte africana como referência fundamental da arte moderna.

 

 

A coleção de obras doadas por artistas de todas as cores apresenta quase um panorama da arte brasileira da época, sendo complementada mais tarde por peças de artistas africanos e caribenhos adquiridas por Abdias durante seu tempo de exílio.

 

Em 1968, Abdias aceitou o desafio do irmão orquídea Efraín Tomás Bó e iniciou seu próprio fazer artístico com apoio de dois jovens artistas mineiros do MAN: o pintor Sebastião Januário, de Dores de Guanhães, e o escultor José Heitor da Silva, de Além Paraíba. Perseguido pelo regime militar, Abdias partiu para os Estados Unidos e lá desenvolveu sua pintura em meio à intensa militância pan-africanista que o levou à África e ao Caribe. O olhar forte do ativismo político continuava repleto da ternura expressa na criação artística. A evolução de sua sensibilidade sobre a questão de gênero se revela nitidamente na poesia, na pintura, na militância e na reelaboração de sua peça Sortilégio.

 

Voltando ao Brasil, Abdias retoma o ativismo junto a uma nova geração do movimento negro e ajuda a fundar o Partido Democrático Trabalhista (PDT), com Leonel Brizola; assume como deputado federal ao lado do indígena Mário Juruna; atua como senador e secretário do governo do estado do Rio de Janeiro. Continua pintando e publica peça e poesias ao lado de obras como O Quilombismo, O Genocídio do Negro Brasileiro e Sitiado em Lagos. Participa do movimento negro até se juntar aos ancestrais, ali ao lado do Cais do Valongo.

 

Eu tive o privilégio de compartilhar com ele parte dessa trajetória a partir do momento em que o conheci em Buffalo (EUA), minha cidade natal, onde ele atuava como professor da Universidade do Estado de Nova York. O racismo já era um tema que me mobilizava, e eu conhecia o Brasil de um intercâmbio feito anos antes. Logo me vi ao lado de Abdias como intérprete em Dacar, no Senegal, no encontro em que foi fundada a União de Escritores Africanos. Visitamos a recém-independente Guiné Bissau; passamos um ano na Universidade de Ifé, no coração da Nigéria. Ao traduzir e ajudar na pesquisa de seus textos e discursos, eu me engajava na sua causa. Era uma continuidade de meu ativismo anterior contra a guerra do Vietnã e em defesa dos presos da penitenciária de Ática, acusados das mortes ocorridas na rebelião de 1971 quando todas essas mortes foram causadas pela repressão. A atuação de Abdias em teatro, poesia e pintura, artes que eu amava, trazia ao ativismo uma dimensão apaixonante que me reforçou convicções e renovou energias, unindo aspectos essenciais da minha vida, porém, até então, vividos separadamente.

 

Embarquei com ele em uma nova etapa de luta por direitos humanos e contra o racismo. Passamos a viver em função do trabalho a quatro mãos nas diversas frentes dessa luta, movidos pelo amor que só crescia a cada obstáculo erguido pelo preconceito ou pelas convenções hipócritas da sociedade ao redor. A convivência com Abdias foi um privilégio pela riqueza e pelo vigor de sua postura diante da vida e da causa. Postura de amor a todos os seres. A unicidade das coisas aparentemente diversas, como força e sensibilidade, arte e militância política, era sua práxis diária e a mensagem de seu trabalho artístico. Essa unicidade remete à essência humana comum a todas as pessoas, motivo tanto do olhar forte como da ternura de Abdias.

 

 

Elisa Larkin Nascimento

 

[Doutora em psicologia pela USP e mestre em direito e em ciências sociais pela Universidade do Estado de Nova York. Co-fundadora e atual diretora presidente do IPEAFRO – Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros] [Este texto faz parte da publicação produzida pelo Itaú Cultural especialmente para a Ocupação Abdias Nascimento]