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ESPIRITUALIDADE

Das ervas sagradas

Em 1997, Glauco fundou a igreja do santo-daime Céu de Maria e se tornou um importante líder espiritual da religião que efetuou em sua vida uma mudança de hábitos significativa

 

Raimundo Irineu Serra (1892-1971), descendente de africanos, deixou o Maranhão de origem, em 1912, para trabalhar e reencontrar parentes na floresta amazônica. Lá, descobriu a ayahuasca – bebida conhecida dos povos autóctones da região há milhares de anos e associada a manifestações do espírito, a clarividência, a melhoria da saúde.

 

Ao começar a beber o chá, Irineu mirou uma mulher, Clara, de quem recebeu a sentença de se isolar na mata, comendo mandioca e tomando mais chá, para esperar revelações. Mirar para os daimistas descreve o que ocorre quando a ayahuasca altera os sentidos, a viagem.

 

Na mata, Irineu voltou a mirar Clara, dessa vez como Nossa Senhora, a Rainha da Floresta, e foi apresentado a uma nova religião: o santo-daime. O nome é corruptela do verbo dar, no modo imperativo das exortações de fé, dai-me luz, dai-me amor. Designa religião e bebida e elas estão amalgamadas como unha e carne, noite e lua, daime e daime.

 

Seguidor de Mestre Irineu, Sebastião Mota de Melo (1920-1990), fundou, em 1974, na atual Vila Céu do Mapiá, (Pauini, AM), o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (Cefluris). A vila está localizada na Floresta Nacional do Purus, área de proteção ambiental na fronteira do Amazonas com o Acre. Conhecido como padrinho Sebastião, ele deu início ao processo de oficialização da religião.

 

Seu filho, Alfredo Gregório de Melo, virou padrinho Alfredo e o sucedeu como líder da igreja que, em 1998, passou a se chamar Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal (Iceflu) e segue expandindo o alcance. Atualmente são mais de 100 locais de prática no Brasil e em outros países. Em geral, são comunidades onde está uma igreja, casas de fiéis e clérigos, em pontos afastados dos centros urbanos, onde cultivam as plantas usadas no chá. Seja na Espanha, no Japão ou no Havaí (EUA).

 

Mestiça e única

A religião é mestiça – reza o terço, acende velas para espíritos da floresta e bate atabaque. Mescla referências do cristianismo e das tradições indígenas e afro-brasileiras. A doutrina prega o amor, a verdade e a justiça.

 

Na liturgia, além da ingestão do chá, há música – preservada em hinários, interpretada por instrumentos entre os quais o maracá é o mais importante, com canto puxado pelas vozes femininas – e bailado. Há ainda o uso de vestes e adereços específicos, a farda – calça, camisa e terno brancos com gravatas e broches para os homens; camisa e saia brancas, uma espécie de avental verde com fitas coloridas e coroas para as mulheres. Nas cerimônias, uma energia emana da harmonia do grupo, reunido em roda com o altar no centro, sempre os homens apartados das mulheres.

 

A infusão é feita com dois ingredientes, folhas rainha (psicotrya viridis) e cipó jagube (banesteriopsis caapi) e recomenda-se, dias antes de toma-la, evitar carnes, álcool e sexo. Entre as reações, pode ocorrer um processo de limpeza do corpo e do espírito, com vômitos e diarreias, e o aumento da percepção da atividade onírica e dos

 

sentidos. Entre os iniciantes ocorre de beber o chá e não sentir nada. O daime tem suas vontades, dizem, e cada caminhada é única.

 

Céu de Maria e Santa Maria

É ligado à Iceflu o Céu de Maria, igreja do santo-daime fundada por Glauco Villas Boas, em Osasco, em 1997. O cartunista se tornou um importante líder espiritual da religião que efetuou em sua vida uma mudança de hábitos significativa, comentada por pessoas próximas a ele. Levou para o Daime, praticamente, todos os familiares, além de amigos e curiosos ligados à vida cultural de São Paulo. Popularizou a crença em um novo nicho.

 

Glauco tocava acordeom nos rituais que comandava e deixou dois hinários: Chaveirinho (com 42 hinos) e Chaveirão (com 11 hinos). Os títulos são referência a São Pedro, guardião da chave do céu, de quem ele era devoto. Recebidos durante as mirações, os hinos têm simples estrutura melódica e letra e são cantados repetidas vezes como mantras.

 

É usada nas cerimônias do Daime outra erva cuja liberação é discutida e o uso recreativo comum, a cannabis. Chamada de Santa Maria, seu uso foi sugerido em uma miração do padrinho Sebastião. Glauco, antes mesmo do Daime, era afeiçoado pela planta, sendo lembrado pelos amigos em diversas situações em que a fumou em espaços públicos e privados à revelia de proibição.

 

Os 53 hinos (mesma idade que tinha quando foi assassinado) compostos por Glauco louvam a Santa Maria. No hino Uma Bela História, por exemplo: “Com o galho verde em sua mão/O anjo veio e fez a profecia/Agora vamos ter união/E mais respeito a Santa Maria”. Por ter o consumo proibido, a maconha não é usada nos rituais do Céu de Maria.

 

Para Glauco, assim como percebe os preceitos do Daime, ervas sagradas carregam poderes do homem e do espírito. Ao beber o chá ou fumar a cananabis não está em jogo a diversão banal. São atos sagrados, de cura e transcendência, que são invocados.

 

Na mitologia grega, Glauco é nome de dois personagens cujas histórias são marcadas pela presença das ervas: um mortal que se transforma em deus marinho após ingerir uma erva mágica ou um filho do Rei Minos, que se afoga em um pote de mel, mas é ressuscitado por meio do uso de ervas no seu corpo morto.

 

[Texto produzido pelo Núcleo de Comunicação do Itaú Cultural para a sua publicação e hotsite]

 

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