Nas palavras do curador

Rafael, filho da homenageada e curador da mostra, fala sobre os mais de 40 anos de vida, arte e desenhos de seu pai, e de suas transformações e desdobramentos em muitos Laertes nos diferentes contextos do país.

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No labirinto do Minotauro

 

Não é muito fácil resumir em um texto curatorial o que você está prestes a ver aqui. O volume de trabalho produzido por (meu pai) Laerte reflete sua relação íntima de mais de 40 anos de vida, arte e desenho, assim como as transformações e os desdobramentos de muitos Laertes nos diferentes contextos do país. É com a visão nublada pelo envolvimento pessoal de filho que me volto para essa obra.

 

Os trabalhos mais conhecidos pelo público são os Laertes pirata, travesti, paulista, humorista de tiras nos principais jornais do país; inteligente e bem-humorado nas entrevistas. Quem nasceu antes dos anos 1970 talvez se lembre com mais força dos Laertes da militância sindical, da revista Balão, do Laerte da Gazeta Mercantil, da revista Placar e das revistas de banca da editora Circo. Os mais atentos conhecem o Laerte roteirista de materiais para televisão, teatro e cinema. Os mais íntimos, o da música clássica, pianista, pai de três filhos; amoroso e parceiro que produziu materiais variados, cinéfilo e ávido leitor; Laerte inseguro, cheio de dúvidas sobre a profundidade e a importância de seu trabalho em formatos e intensidade variados. E o Laerte de dores e de perdas profundas, de amores, casamentos e divórcios, de conquistas pessoais e de explosões internas silenciosas pouca gente viu.

 

Agora, pegue uma suposta linha cronológica e misture a um emaranhado de intrincadas relações, como um novelo de lã. Surge o guia invisível para percorrer o labirinto. Nas paredes, trabalhos escolhidos entre milhares. Cada caminho leva a uma compreensão do todo. Todos juntos não levam a lugar algum. Devolvem reflexões, a multiplicidade de Laertes e a sua própria natureza: dúvidas, avaliações cautelosas, sempre evitando armadilhas morais, preconceitos e maniqueísmos no julgamento do mundo.

 

Nas paredes está uma gama de temas e assuntos – ciência, cosmos, humor, sexo, história, morte, guerra e gatos. Há dias bons e ruins, fragilidade e agressão, o bom e o mau gosto, o gosto dos outros. Beethoven, Mozart, Henfil e Deus também.

 

Há, sobretudo, desenhos, em variados formatos e acabamentos, nos quais é evidente a desenvoltura e o prazer do artista em fazê-los, a intimidade com pincel, lápis, caneta, tinta e papel. Saltam aos olhos o vocabulário visual, o traço autoral do traço, o estilo, e como tudo isso se manifestou cedo.

 

O objetivo da mostra nunca foi a compreensão “total” do artista nem desfazer o novelo de lã. É uma edição ambiciosa dessa produção que mostra algo que nunca tive dúvidas: Laerte é vários e haverá outros.

 

Nesse labirinto que é a sua obra, existe uma criatura que ronda, tal como no mito do Minotauro. Inquietação ou angústia, um superego solto, uma entidade sem sexo, que acuada, ataca. Vive dentro do artista ou é parte dele. Exoesqueleto que o controla e o direciona. Pode ser o próprio Laerte, criatura entre nós. Ele, meu familiar pai, um monstro.

 

 

Rafael Coutinho
curador