O roxo e o negro são as cores da solidão

O repertório temático, cromático e sonoro da obra de Hilda Hilst é o tema deste texto do autor da dissertação Na Falha da Gramática, a Carne: a Pornografia em Hilda Hilst. Atualmente, faz doutorado no departamento de literatura brasileira da Universidade de São Paulo (USP). Ele observa que existe um profícuo enredamento de diferentes operações estéticas em toda a obra da autora. Em sua análise, a escrita dela parece enamorar-se, por exemplo, de estratégias das artes plásticas e também parece sintonizar-se com um repertório musical.

SUA OBRA POR RONNIE CARDOSO

O repertório temático, cromático e sonoro da obra de Hilda Hilst

Por Ronnie Cardoso

 

“Aqui estou eu. eu Vitório, Hillé, Bruma-Apolonio e outros.

eu de novo escoiceando com ternura e assombro

também Aquele: o Guardião do Mundo.”

Estar Sendo. Ter Sido

 

Feche os olhos e imagine uma procissão, ou um desfile, em que se enfileiram figuras estranhas, dementadas, de comportamento degenerado ou tortuoso. Figuras como Qadós (em sua busca carnal por Deus), Kadek (cujo desejo de morte é atendido somente após calar seu vício de pensar a beleza), Lucius Kod e Lucas (aqueles que experimentam um amor homossexual alucinado e trágico), Hillé (ser desamparado cuja existência vazia encontra acolhida no vão da escada onde passa a morar com sua porca de estimação), Stamatius (o mendigo quer pensar e intensificar o gozo em meio ao lixo em que vive), Karl (o aristocrata que se lança em variadas paixões incestuosas), Cordélia (irmã de Karl, aquela que se torna amante do próprio filho, fruto da relação incestuosa com seu pai), Dedé e Corina (devassos que se envolvem em orgias com o jumento Logaritmo). Todas essas personagens de diferentes obras de Hilda Hilst voltam irmanadas e redesenhadas pelo narrador – pouco ortodoxo, também ele – do último livro em prosa da autora, Estar Sendo. Ter Sido, de 1997.

 

Agora abra os olhos e pense se alguma delas lhe é familiar, se alguém parecido com elas foi hospedado em sua casa ou acolhido na morada ao lado. Indivíduos semelhantes a essas personagens podem ter residido no bairro, na cidade ou no país em que você está, quiçá estejam neste planeta, mas provavelmente você deseja que eles permaneçam bem longe. No entanto essas figuras hilstianas irrompem em nossa frente como um espelho. De certo modo, compartilhamos com elas das mesmas dúvidas em relação à finitude da vida; levantamos questões similares diante de um Deus, como pensa Hilda, cego, surdo, mudo e ausente; experimentamos igual devoção amorosa; emparelhamo-nos em vista de idêntico desamparo. Talvez, com menos arrogância e altivez, reconheceríamos que elas habitam em nós mesmos.

 

De fato, Estar Sendo. Ter Sido pode ser lido como um testamento literário sobre a perplexidade, a miséria, a sordidez, a fragilidade, a solidão e também a grandeza do ser humano. Nessa obra retornam não só as personagens de boa parte da prosa ficcional da escritora, mas também as temáticas e os aspectos formais que distinguem sua literatura e algumas das questões que a obsedam desde a elaboração do seu primeiro livro, Presságio, lançado em 1950. A escrita segue o fluxo de consciência de um homem de 65 anos (Vitório), bem como as interlocuções que ele estabelece, principalmente, com seu filho (Junior) e seu irmão (Matias). Os diálogos não são marcados por travessão, nem os períodos iniciados com letra maiúscula – o que, por vezes, deixa o leitor perdido, tentando identificar os interlocutores.

 

Nesse contexto, parece ser Vitório o emissor de todas as falas que compõem as conversas, tal como um insano repetindo as vozes que o assolam. No texto que enuncia, nota-se um humor ácido, uma visão niilista da vida e o desprezo pela maioria das pessoas que o cerca. Por vezes, tem-se a sensação de que se está lendo as alucinações de um indivíduo em estado de possessão, como nesta passagem: “agora ele vem vindo. quem? deus, Matias. onde? no meio dessa flor, eu te disse que ele é mignon. mas tanto assim?”. Após um surto psicótico que a desvincula totalmente da realidade, a personagem delira imaginando que sua insanidade pode ser tingida por uma miríade de cores, em contraposição à sua percepção da demência alheia, que seria carregada de tons escuros: “a loucura é sépia. ou talvez mais pro ovo. a loucura é algures, não em mim. os corvos naquele céu eram de um outro, minha loucura é rajada, esparzida de cores, loucura é escarcéu, é não, é chumbosa, pesada…”. Plúmbea? Sépia? Rosada? Qual cor representaria sua loucura? O colorido, parece nos perguntar a personagem em outro momento, lhe daria substância menos amarga?

 

 

Tons escuros e notas dissonantes

 

Estar sendo. Ter sido mistura teatro, poesia e fragmentos de histórias. A rigor, foi denominado romance. Mas não há uma narrativa, nem mesmo Vitório é um narrador no sentido convencional. Ele se apresenta como um ser fragmentado tal como o texto que enuncia.

No imaginário do leitor ganha forma como persona incompleta, que se mostra em estado de extrema desordem íntima. Também de Hillé (em A Obscena Senhora D, de 1982), Kadek (em “Pequenos Discursos. E um Grande”, conjunto de textos publicado no livro Ficções, de 1977) e Qadós (em obra com título homônimo, de 1973) só teremos pedaços esparsos e desordenados. Parecem ser esboços feitos para suportar o vazio e a dor da existência, são figuras delineadas para interrogar a vida e a morte. Todas essas personagens, em suas respectivas obras, oferecem uma fluência verbal vertiginosa, histórias fragmentadas, muitas interrogações e colorações exasperadas que deixam visíveis, ou mais acentuados, o absurdo e a incongruência das suas trajetórias. Em cada criação ficcional de Hilda, acompanha-se um roteiro verbal tortuoso, no qual a poesia se sobrepõe à prosa. No acúmulo desordenado de fragmentos, ganham destaque o ritmo e o cromatismo dinamizados pela palavra.

 

Com efeito, existe um profícuo enredamento de diferentes operações estéticas em toda a obra da autora. A escrita dela parece enamorar-se, por exemplo, de estratégias das artes plásticas – “Te penso/ como quem quer pintar o pensamento/ Colorir os muros do passado/ De umas ramas finas, mergulhadas/ Num luxo de tinturas” (trecho de poema presente em Cantares de Perda e Predileção, de 1983). E também parece sintonizar-se com um repertório musical – “Estou viva./ Mas a morte é música./ A vida, dissonância” (versos retirados do já comentado Presságio). Especialmente quanto a este último aspecto, não é difícil perceber a sofisticação harmônica que pontua a sua construção lírica – o que torna ainda mais significativo alguns de seus livros e vários de seus poemas serem intitulados por meio de terminologia musical. Vale lembrar, entre os primeiros, Balada de Alzira (1951), Balada do Festival (1955), Sete Cantos do Poeta para o Anjo (1962), o já citado Cantares de Perda e Predileção e Cantares do sem Nome e de Partidas (1995); e, entre os segundos, “Moderato Cantabile”, “Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé. De Ariana para Dionísio”, “Prelúdios-Intensos para os Desmemoriados de Amor” e “Árias Pequenas. Para Bandolim”. Não é por outra razão que seus versos tenham inspirado uma série de compositores – tanto eruditos, como Gilberto Mendes e José Antônio de Almeida Prado, quanto populares, como Adoniran Barbosa e Zeca Baleiro.

 

Desde os poemas iniciais, percebe-se que o texto de Hilda está permeado com matizes e melodias para tratar de temáticas relacionadas com o sublime. Há que se notar, porém, na substância do seu primeiro livro em prosa, Fluxo-Floema (1970), a gradação de tonalidades, tanto musicais quanto ópticas, demarcando uma alteração profunda em sua literatura. A partir dos anos 1970, o projeto literário da escritora passa a transitar entre o sublime e o abjeto, o translúcido e o opaco, o alto e o baixo, colocando sob tensão essas polaridades. Em tal movimentação, ganha destaque sobretudo a linguagem obscena e a investigação do lado obscuro dos seres humanos.

 

Para dar forma a essa dimensão mais sombria e incompreensível, a autora passa a utilizar uma paleta de cores mais intensas e escuras, além de um repertório de sons, por vezes, dissonantes. A sua poesia anterior aparentava ser mais organizada, transparente, com uma marcação rítmica tonal. Seguindo outro percurso, a poeticidade de sua prosa apresenta-se mais desordenada, irregular, adiáfana, e a sonoridade é predominantemente atonal. Nessa inflexão, muda-se o ritmo e as cores se intensificam: ganham um arranjo mais complexo na ficção. Em menor grau, também sua produção lírica posterior será afetada por essa nova disposição estética.

 

Tal perspectiva ganha dimensão e voz quando Vitório observa que “a solidão tem cor, é roxo escuro e negro”. À imagem e semelhança de sua criadora, as criaturas de Hilda parecem comungar com ela do mesmo encantamento pelos sons, desenhos e coloridos inventados por meio das palavras e pela disposição delas numa linha de resolução ou irresolução harmônica. Talvez, assim, preencham os vazios deixados pelo desamparo e isolamento próprios da condição humana. Ao pegar um livro de Hilda Hilst, portanto, lembre-se do pedido feito pelo eu lírico no livro Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão (1974): “Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta/ O homem está vivo”.

 

 

Ronnie Cardoso é autor da dissertação Na Falha da Gramática, a Carne: a Pornografia em Hilda Hilst. Atualmente, faz doutorado no Departamento de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP).

 

*Este texto foi extraído da publicação preparada pelo Itaú Cultural para a Ocupação Hilda Hilst, a ser disponibilizada gratuitamente para o publico durante o periodo da mostra

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