Hilda Hilst, autora de Hilda Hilst

SUA OBRA POR LUISA DESTRI

Não são raras as ocasiões em que Hilda propõe um sistema de autorreferência. E a novela de 1982 é, também nesse sentido, exemplar. Há nela, por exemplo, trechos que fazem menção a outros textos da autora – caso da pergunta feita por uma personagem: “porque guardei palavras numa grande arca e as levarei comigo, não disseram isso em algum lugar?”. Esse algum lugar é um poema de Da Morte. Odes Mínimas (1980), cuja segunda estrofe é inteiramente reposta na passagem em prosa. Ou se poderia tratar ainda de um poema de Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão (1974), em que se lê: “Se todas as tuas noites fossem minhas/ Eu te daria, Dionísio, a cada dia/ Uma pequena caixa de palavras/ Coisa que me foi dada, sigilosa”.

 

Mas a novela traz sobretudo referências que reúnem história de vida e criação literária, parecendo sempre remeter à tese de que a literatura tem sua parcela de inevitável autobiografia. Uma senhora que se pergunta demais, tanto, que passa a viver em retiro, um pai que antes de sucumbir à loucura deixa um conselho ao marido da filha: “não deixa que faça as minhas mesmas perguntas, a casa deve ficar mais clara, casa de sol, entendes?”. Não à toa, diversas peças jornalísticas aproveitaram a obra para nomear sua autora – “a obscena senhora Hilst” –, tomando a protagonista Hillé como alter ego de Hilda; e à escritora certa vez se perguntou, como quem espera apenas um sim: “Sua ligação com seu pai é, portanto, uma construção da memória, uma transformação literária da memória?”. Tomar o livro como autoficção ou buscar no discurso autobiográfico indícios de fabulação são tarefas, porém, que não dão conta da completa interpenetração entre vida e literatura no caso de Hilda Hilst.

 

 

Sacerdotisa da literatura

 

A autora não deixou uma autobiografia, mas, pouco avessa a falar de si, fez das entrevistas à imprensa o seu discurso autobiográfico. É razoável, assim, valer-se delas para analisar a vida da escritora, ainda que mais adiante seja imprescindível questionar qual é o “eu” que Hilda assume em cada conversa. Em seu contato com os jornalistas – considerado desde o lançamento do primeiro livro, Presságio, em 1950 –, observa-se o progressivo desenvolvimento de uma estratégia: as aparições públicas da autora, cuja figura se aproxima constantemente à das suas personagens, vão aos poucos se tornando parte integrante de seu projeto literário.

 

O mais notório fato da vida da autora talvez seja a sua mudança, em 1966, para o interior de São Paulo, motivada pelo desejo de se dedicar integralmente à literatura – o que na capital paulista era dificultado, contava ela, pelas distrações típicas de quem frequenta as colunas sociais. Embora jamais ignorada pelos jornalistas, sua retirada para a chamada Casa do Sol ganhou mais atenção durante as entrevistas apenas no fim da década de 1970. Hilda inicialmente creditou o fato à necessidade de estar livre das “invasões do cotidiano em sociedade” para escrever melhor; logo, porém, radicalizou o motivo do afastamento: “você vai sentindo que as conversas já não têm mais sentido, que você gostaria de estar em algum outro lugar, [...] que está faltando um fio ligando você a alguma coisa que você desconhece”, disse ela, precisamente na época em que escrevia A Obscena Senhora D.

 

As diferenças nos discursos poderiam ser creditadas a aspectos circunstanciais das entrevistas ou meramente à passagem do tempo, que permite elaborar o sentido do que foi vivido. O relato da mudança, no entanto, incorpora elementos tradicionais das narrativas de conversão religiosa, demonstrando os esforços de Hilda para subordinar o mais completamente possível à literatura as experiências pessoais empíricas. Como exemplo, eis alguns pontos dessa autobiografia, tais como citados pela própria escritora: Hilda se afasta da vida mundana por força da leitura de Relatório ao Greco (1961), livro póstumo do autor grego Nikos Kazantzákis (1883-1957), oferecido por um amigo que morre jovem; a inclinação para a santidade da escrita, contudo, está anunciada desde a infância, quando, entre outros episódios, escandaliza as freiras de seu internato ao carregar consigo um exemplar de A Origem das Espécies (1859), do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), revelando-se desde cedo um ser de exceção.

 

A instalação em uma casa cujo projeto se inspira em mosteiros é ao mesmo tempo um despojamento (“passei a usar batas e a me enfear”,

 

afirmou), uma ruptura e um retorno: colocando-se de volta no caminho correto, a convertida reencontra sua vocação.

 

Bem a propósito, o retrato de Hilda como uma sacerdotisa da literatura articula-se ao seu processo criativo, remetendo diretamente ao livro de 1982. Na mesma entrevista em que comentou longamente sua “conversão” – concedida a Sônia de Amorim Mascaro em 1986 –, ela contou como encontrou o início do texto: “a Hillé ficou me acompanhando um ano, dois anos. Às vezes eu anotava uma frase que ela dizia, um momento dela, mas nunca conseguia a Hillé inteira. Até que um dia [...] me veio a frase: ‘Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome’. É o dia em que vai começar tudo”. Visto assim, o esforço para identificar Hilda e Hillé é também da própria autora: o leitor é estimulado a conjugar escritora e personagem, de modo que esta ganha concretude, e aquela dramaticidade.

 

 

Que se ouça a confissão

 

A relação mais profunda entre as duas figuras desenha-se, porém, com os contornos de uma crise literária. A protagonista de A Obscena Senhora D está em radical conflito com a sociedade: o desfecho indeterminado, em que o Porco-Menino finalmente se aproxima de Hillé, pode até representar o encontro pelo qual a protagonista tanto ansiava – mas em âmbito individual, jamais correspondendo à possibilidade de se comunicar com os que estão do lado de lá de sua janela. Tal como os animais de seu bestiário, por força do encontro com o porco pode chegar a sentir-se integrada, “amoldada, senhora de seu corpo”. Não há linguagem, porém. Não há criação, portanto.

 

Já Hilda, então envolvida no esforço pela própria canonização, quer que o afastamento permitido pela mudança para Campinas seja a chave de sua comunicação com o outro. Enquanto Hillé, com seus gritos pela janela, pretende despachar um “homem como outro qualquer”, a autora, com gritos que simulam obscenidade, quer atrair para si esse homem qualquer. Assim, a nova investida do desejo de contato dá-se como uma conversão ao revés: “a santa levantou a saia”, afirmou a escritora ao lançar O Caderno Rosa de Lori Lamby, em 1990, anunciando sua despedida da literatura “séria”, mas em realidade brincando com a imagem autoral com a leveza de quem confia em seu próprio trabalho.

 

Se as entrevistas até então colocavam em cena duas forças – a escritora e o jornalista, podendo este fazer ou não eco à sacralidade do ofício literário –, a partir daí elas passam a incorporar uma terceira instância: o leitor, a quem cabe desconfiar do embuste proposto por Hilda e geralmente reproduzido pelos jornalistas.

 

Não haveria muito interesse na passagem do dois ao três se esta não fosse também a história da literatura hilstiana, implicando todos os gêneros que praticou. Num primeiro momento estruturados na dualidade – isto é, opondo ser de exceção e mundo ordinário; eu lírico e objetos de seu desejo; escritor e editor; amante e amado –, os livros da autora passam, num segundo momento, a apresentar uma estrutura triangular, fluida, em que é preciso optar por um lugar, e não ocupá-lo comodamente. Entre Hillé, Ehud e Dia Dez, para ficar entre as personagens de A Obscena Senhora D, qual será o modo de vida mais viável?

 

Na conjunção entre vida e literatura, a trajetória da escritora supõe, acima de tudo, um paradoxo: se o verdadeiro criador é um ser de exceção, e se a literatura pretende que a exceção se torne regra, como é possível sair de seus próprios limites, dialogando com o que sempre quis deixar fora dela? Hillé se refugiou sob a escada de casa e perdeu a possibilidade de comunicação com o outro; Hilda instalou-se na Casa do Sol a fim de criar, mas seu afastamento não teria sentido se não fosse conhecido pelo público. Assim, inventou e reinventou Hilda, procurando garantir que sua vida (de dedicação à literatura), sem trair os seus princípios (observar à distância/com lucidez), pudesse ainda representar algo (a obra que chega ao leitor).

 

Luisa Destri, doutoranda em Literatura Brasileira na USP, organizou a antologia Uma superfície de gelo ancorada no riso (Globo, 2012), de Hilda Hilst, e é coautora de Por que ler Hilda Hilst (Globo, 2010). Foi selecionada no Rumos Literatura 2008, com o artigo A língua pulsante de Lori Lamby.

 

*Este texto foi extraído da publicação preparada pelo Itaú Cultural para a Ocupação Hilda Hilst, a ser disponibilizada gratuitamente para o publico durante o periodo da mostra

“Quando se é verdadeiramente lúcido, a vida pode ser uma experiência obscena”, afirmou Hilda Hilst em entrevista de 1988. A autora referia-se às deficiências políticas e estruturais do Brasil; comentava o desamparo de analfabetos, crianças e trabalhadores rurais, como sempre direcionando a discussão sobre problemas objetivos para o sofrimento que eles provocam em pessoas com sensibilidade para vê-los. E ao mesmo tempo reescrevia uma célebre passagem de A Obscena Senhora D, publicado seis anos antes: “E o que foi a vida? uma aventura obscena, de tão lúcida”.

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Fazendo da literatura sua história de vida, a escritora subverteu o clichê de que toda produção literária é autobiográfica e criou um espaço próprio para a sua obra

Por Luisa Destri

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